A síndrome de Crouzon, doença genética causada por uma mutação no gene responsável pela codificação dos receptores do fator de crescimento fibroblástico tipo 2 (FGFR-2), foi descrita primeiramente em 1912 por Octave Crouzon, que caracterizou a tríade de deformidade craniana, alterações faciais e exoftalmia. A síndrome de Crouzon, bem como outras síndromes como a de Apert e de Pfeiffer, são também chamadas de craniossinostoses (fechamento precoce das suturas cranianas) sindrômicas. Dentre as craniossinostoses freqüentemente associadas a esta condição, a braquicefalia é a mais freqüente. Outras alterações morfológicas encontradas são: exoftalmo, hipertelorismo, hipoplasia da face média com prognatismo relativa e a má oclusão dentária.
Retardo mental leve pode estar presente nestes pacientes. Diversos fatores são implicados em seu desenvolvimento neuropsicológico, dentre eles a ocorrência de hipertensão intracraniana (HIC) cujo tratamento precoce determinaria um melhor desenvolvimento neuropsicomotor2,3. Fatores relacionados com o ambiente onde a criança está inserida e os estímulos a que ela é submetida podem ter um papel fundamental no seu desenvolvimento4. Outro fator importante a ser considerado é o desenvolvimento morfológico do sistema nervoso central que pode apresentar diferentes tipos de alterações (malformações ventriculares, malformação de Chiari, agenesia de corpo caloso entre outras). Uma melhor qualidade de vida para estes pacientes e suas famílias é o objetivo final de todas as abordagens terapêuticas. A quantificação da qualidade de vida através de questionários sistematizados tem sido alvo de diversos estudos.
Este estudo tem como objetivos determinar fatores relevantes no desenvolvimento neuropsicológico dos pacientes com síndrome de Crouzon, utilizando um modelo de avaliação multidisciplinar que permite correlacionar o momento cirúrgico, a classificação social das famílias, o grau de escolaridade dos pais e a ocorrência de alterações das estruturas encefálicas com o quociente de inteligência apresentado; e correlacionar a avaliação neuropsicológica com a qualidade de vida dos pacientes e suas famílias quantificada pelo questionário de recursos e estresse simplificado.
MÉTODO
O estudo foi desenvolvido durante o ano de 2003 no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da Universidade de São Paulo (HRAC/USP), em Bauru, com aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos deste hospital.
Foram avaliados 11 pacientes (8 operados previamente e 3 não operados) com diagnóstico de síndrome de Crouzon estabelecido a partir de avaliação do setor de genética clinica. Todos os pacientes foram avaliados por equipe multidisciplinar composta por neurocirurgião, cirurgião plástico, geneticista, neuropsicólogo, neurorradiologista e assistente social.
Os exames de ressonância magnética (RM) foram realizados em aparelho de 0,5 T (Flexart, TOSHIBA, Japan) nas seqüências T1, T1 inversion recovery, T2 e Flair, nos planos sagital, coronal e axial.
A análise social das famílias foi realizada utilizando-se do método proposto por Graciano et al.5, que considera: número de membros na família, grau de instrução dos pais, tipo de habitação da família, número de pessoas que coabitam na moradia, tipo de emprego dos pais, salário mensal da família e nível de escolaridade do chefe da família.
A avaliação cognitiva foi obtida utilizando-se a escala de inteligência de Wechsler para crianças em sua 3ª edição (WISC-III) e a escala de inteligência de Wechsler para adultos (WAIS)6-9.
Com a finalidade de investigar a qualidade de vida das famílias dos pacientes, considerando os seus recursos internos, foi utilizado o Questionário de Recursos e Estresse Simplificado (QRE-S) 10 por mostrar-se útil na identificação de padrões de tensão em famílias com crianças com deficiência e que exija maiores atenções e cuidados.
O QRE-S é composto por 52 itens, que foram respondidos pelos pais dos pacientes, que se dividem em quatro fatores. O fator I se relaciona a “Pais e Problemas Familiares” e reflete a percepção e reação de quem responde pelos problemas do paciente, dos outros membros da família ou da família como um todo. O fator II se relaciona ao “Pessimismo” e reflete pessimismo imediato e futuro em relação às perspectivas de independência do paciente. O fator III se refere às “Características da Criança” refletindo as dificuldades pessoais e as limitações ocupacionais e comportamentais dos pacientes e o fator IV se relaciona à “Incapacidade Física” do paciente e reflete as dificuldades em habilidades físicas e nos cuidados pessoais.
Um fator particular sugere qual o problema é o mais emergente na família, embora seja claro que o aspecto multidimensional esteja envolvido no seu padrão e na qualidade de vida.
Para analisar a correlação entre as diversas variáveis estudadas foi utilizado o teste de Pearson.
RESULTADOS
Considerando o gênero dos pacientes avaliados, nove eram do sexo masculino (81,8%) e dois do sexo feminino (18,2%). A média de idade destes pacientes foi 8 anos e 8 meses, variando de 1 ano e 4 meses a 13 anos.
O sintoma que motivou 90,9% das famílias a procurar auxílio médico foi alteração facial. Os principais sinais clínicos encontrados foram: disoclusão dentária (90,9%), prognatia, palato em ogiva, hipoplasia da face média e exorbitismo (81,8%).
Oito pacientes (72,7%) foram submetidos a tratamento cirúrgico das cranioestenoses, sendo 6 em nosso serviço e 2 em outros serviços. A média de idade no momento da intervenção cirúrgica foi 2 anos e 10 meses, variando de 7 meses a 6 anos.
Na avaliação das condições sociais das famílias, constatamos que 45,4% pertenciam a classe baixa inferior e 54,6% pertenciam a classe baixa superior. Avaliamos também o grau de instrução dos pais, levando em consideração o maior grau de instrução entre os dois, e encontramos 9,1% com primário incompleto, 18,2% com ginásio incompleto, 36,3% com ginásio completo, 18,2% com colegial incompleto, 9,1% com colegial completo e 9,1% com nível superior completo.
A avaliação neuropsicológica evidenciou QI médio de 84,2 (46–102). Quando dividimos a população em pacientes operados e não operados, observamos QI médio de 86 (46–102) para aqueles submetidos à cirurgia e 83,5 (74–93) para aqueles não operados. Não houve diferença estatística entre os grupos citados. Apenas um paciente apresentou QI abaixo de 70 (Tabela).
Analisando a qualidade de vida, houve predominância do fator 2 (Pessimismo) em 63,3% dos pacientes, indicando que a maioria das famílias entrevistadas apresenta-se pessimista em relação ao relacionamento social das crianças.
Sete pacientes foram submetidos a estudo com ressonância magnética. A análise neurorragiológica mostrou alterações morfológicas em três pacientes (42,8% dos pacientes estudados por RM) (Figura).
Aplicando o teste de Pearson para correlacionar o desenvolvimento neuropsicológico com seus possíveis fatores influenciadores, constatamos que houve somente relação inversa entre o QI e o QRE-S fator 4 (incapacidade da criança – p=0,019). Não houve correlação entre o QI e outros fatores estudados, como momento cirúrgico, escolaridade dos pais e alterações encefálicas visualizadas na RM.
DISCUSSÃO
De transmissão autossômica dominante, a síndrome de Crouzon tem sua origem em uma mutação do gene responsável pela codificação dos receptores do fator de crescimento fibroblastico tipo 2 (FGFR2), localizado no braço longo do cromossomo 10. O fato de que a mesma mutação genética pode resultar em diferentes fenótipos pode refletir a presença de uma modificação particular em outro lugar no gene, dentro do mesmo cromossomo (fibroblastos de Crouzon e Apert podem ser distinguidos por duas seqüências de expressão genética)11. Existem também indícios de que estas mutações estejam relacionadas com a idade paterna avançada11.
Analisando o desenvolvimento neuropsicomotor dos pacientes com síndrome de Crouzon vários fatores foram postulados na literatura como capazes de influenciá-lo. O primeiro fator a ser extensivamente discutido foi o papel da hipertensão intracraniana (HIC). A incidência de HIC citada na literatura chega a 47% nas craniossinostoses por múltiplas suturas e 19% nos casos de craniossinostoses monossuturais12. Como esta elevação de pressão ocorre insidiosamente, vão atuando mecanismos de complacência cerebral como deslocamento liquórico em direção ao espaço raquidiano e aumento do retorno venoso. Tais fatores associados às anomalias ósseas da base do crânio causa uma mudança em toda hemodinâmica cerebral, com prejuízo para a circulação encefálica e oxigenação cerebral justificando um declínio no desenvolvimento mental2, que tardiamente se manifesta como déficit de atenção, dificuldade de aprendizado e mesmo alterações comportamentais. Connollyet al.13 descrevem também a possibilidade de pacientes com cranioestenoses sindrômicas desenvolverem quadros de HIC tardios classificando-os como portadores de “cranioestenose progressiva”. A maioria deste grupo (86%)era portadora de síndrome de Crouzon.
No intuito de evitar os efeitos deletérios da HIC no desenvolvimento cerebral, preconiza-se a cirurgia precoce de remodelação craniana para as cranioestenoses sindrômicas como Crouzon e Apert. Alguns autores preconizam o momento entre 4 a 12 meses14 e outros consideram tempo ideal até 36 meses2. Postula-se que os pacientes com deformidades craniofaciais tratadas precocemente sofreriam menos trauma psicológico com relação à família e a sociedade em geral15, devido à uma melhor remodelação craniana. O único paciente da nossa amostra com QI abaixo de 70 foi operado tardiamente (60 meses) e ao exame neurorradiológico apresentava alteração morfológica do corpo caloso.
Existe consenso na literatura que a idade no momento da cirurgia é importante fator associado ao desenvolvimento mental (e conseqüentemente na qualidade de vida) nas craniossinostoses sindrômicas. Contudo, outros fatores também são capazes de influenciar no QI destes pacientes. Renier et al.14 mostraram que, em pacientes portadores de síndrome de Apert, também foram importantes as alterações morfológicas encefálicas (anomalias do septo pelúcido) e a qualidade do ambiente familiar (39,3% dos pacientes com estrutura familiar normal alcançaram QI normal, enquanto somente 12,5% dos pacientes institucionalizados alcançaram este limite). Ainda tratando-se da síndrome de Apert, encontramos num estudo preliminar um índice de retardo mental de 28,5% (4 pacientes de uma amostra de 18), sendo que a condição sócio-econômica das famílias e o nível de instrução dos pais também foram citados como sendo fatores relevantes no desenvolvimento cognitivo destes pacientes16. Alterações encefálicas foram encontradas em 56% desta população com síndrome de Apert17.
Entretanto, apesar de haver diversos estudos tentando correlacionar fatores que possam interferir no desenvolvimento neuropsicológico na síndrome de Apert, existem poucos trabalhos na literatura específicos para a síndrome de Crouzon, possivelmente porque o índice de retardo mental neste grupo é muito menor que em relação ao Apert18, e com uma prevalência de alterações estruturais cerebrais também menor. Aguado et al.19 fazem revisão da literatura e concluem que o retardo mental nesta síndrome é leve e que o déficit cognitivo é irregular apresentando comprometimento de certas faculdades mentais de forma variada. Em nosso estudo, a taxa de atraso cognitivo foi 9,1%.
Pertschuk et al.20 estudaram os aspectos psico-sociais de crianças e adolescentes portadores de malformações craniofaciais congênitas. Segundo os autores, sabe-se que a aparência física constitui-se hoje em dia importante variável do ponto de vista psico-social. Analisando o ajustamento psico-social em uma amostra inicial de 43 crianças entre 6 e 13 anos portadoras de malformações craniofaciais contra um grupo controle de crianças normais21, os autores notaram que as crianças sindrômicas apresentaram níveis mais altos de ansiedade, eram mais introvertidas e demonstravam uma auto-estima mais pobre; os pais destes pacientes relataram mais experiências sociais negativas para seus filhos, e sinais de hiperatividade; os professores destas crianças relataram pior desempenho escolar. Dando continuidade ao estudo, os mesmos autores analisaram as mesmas variáveis nestas mesmas crianças 12 a 18 meses após serem submetidas a cirurgia craniofacial, comparando-as novamente com um grupo controle22. Apenas uma variável, a ansiedade, apresentou melhora evidente. Tendências para uma mudança positiva foram observadas em relação a inibição e ao comportamento hiperativo. Não houve mudança em relação ao comportamento social e outras variáveis.
Em relação à síndrome de Crouzon, Cohn et al.23 estudaram os aspectos de ajustamento social em 2 pacientes portadores da síndrome e não operados, com inteligência normal. Observaram que a síndrome teve implicações negativas para ambos, principalmente do ponto de vista vocacional e de relações interpessoais.
No presente estudo o questionário de recursos e estresse evidenciou predomínio do fator 2 - pessimismo - entre as famílias e se correlacionou de maneira inversa com o quociente de inteligência dos pacientes na análise do fator 4. O fator 4 que reúne itens relativos a incapacidade dos pacientes apresentou valores maiores nos pacientes com menores QIs.
Podemos concluir que a qualidade de vida dos pacientes com síndrome de Crouzon se correlacionou com o desenvolvimento neuropsicológico destes pacientes (correlação entre o quociente de inteligência e os resultados do questionário de recursos e estresse - QRES-4).
Fatores habitualmente relacionados ao desenvolvimento neuropsicológico como a cirurgia precoce e aspectos morfológicos encefálicos não apresentaram correlação significativa com o quociente de inteligência destes pacientes.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
http://www.scielo.br/pdf/anp/v65n2b/20.pdf
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